A obesidade já é considerada uma das maiores pandemias mundiais, impactando milhões de pessoas em diferentes idades e contextos. Longe de ser apenas uma questão estética, trata-se de uma doença crônica e multifatorial, associada a complicações graves como diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares e até alguns tipos de câncer. No entanto, a resistência em reconhecê-la como uma condição médica real ainda alimenta o preconceito e dificulta o acesso ao tratamento adequado.
Para discutir essa realidade e apresentar os avanços mais recentes no cuidado de pacientes com obesidade e doenças metabólicas, conversamos com o Dr. Bruno Cardoso, endocrinologista especialista em controle de peso, doenças hormonais e metabólicas. Ele traz uma visão clara e fundamentada sobre o papel dos novos medicamentos, a importância do acompanhamento multiprofissional, o impacto da telemedicina e como a mudança de percepção social pode transformar o enfrentamento dessa condição que já ameaça a saúde pública global.
A obesidade já é considerada uma pandemia mundial. O senhor acredita que ainda há resistência em reconhecer a obesidade como uma doença crônica, e como isso impacta os pacientes?
Sim, ainda existe resistência tanto entre profissionais de saúde quanto na sociedade em geral em reconhecer a obesidade como uma doença crônica. Muitas vezes, ela é vista apenas como consequência de maus hábitos, o que leva à estigmatização do paciente. Esse preconceito é extremamente prejudicial, porque faz com que muitos evitem procurar ajuda médica por vergonha ou por acreditarem que não merecem tratamento. A obesidade é uma condição multifatorial, com componentes genéticos, hormonais, ambientais e comportamentais, e precisa ser tratada de forma semelhante a outras doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. Quando não a reconhecemos como doença, acabamos responsabilizando unicamente o paciente, deixando-o sozinho em um problema que exige abordagem médica estruturada.
Muitos ainda enxergam a obesidade apenas como “falta de disciplina”. Como desmistificar essa visão e mostrar que existem fatores metabólicos e hormonais muito mais complexos?
A ideia de que obesidade é “falta de disciplina” é uma simplificação perigosa. A ciência já mostrou que o corpo humano tem mecanismos de defesa contra a perda de peso, como a redução da taxa metabólica basal e o aumento da fome após emagrecimento. Além disso, existem variações genéticas que influenciam na regulação do apetite, na saciedade e até na forma como armazenamos gordura. Também precisamos considerar alterações hormonais, distúrbios do sono, estresse crônico e o ambiente alimentar atual, que estimula consumo de ultraprocessados altamente calóricos. Portanto, reduzir a obesidade a uma questão de força de vontade é injusto e cientificamente incorreto. O papel do médico é justamente educar a população sobre esses fatores e oferecer estratégias de tratamento que levem em conta toda essa complexidade.

Nos últimos anos, surgiram medicamentos que revolucionaram o tratamento da obesidade. Quais são os mais promissores hoje e como eles atuam no organismo?
Sem dúvida, os medicamentos mais promissores são os chamados agonistas do receptor GLP-1 e, mais recentemente, os agonistas duplos de GLP-1 e GIP. Eles imitam hormônios intestinais que regulam saciedade e controle glicêmico. O paciente passa a sentir menos fome, consegue controlar melhor a ingestão de alimentos e, ao mesmo tempo, há melhora significativa no metabolismo da glicose, o que é fundamental em quem tem risco de diabetes tipo 2. Os resultados clínicos têm sido impressionantes: reduções de peso de dois dígitos percentuais, algo que antes só se conseguia com cirurgia bariátrica. Isso abre uma nova era no tratamento da obesidade.
Há quem critique o uso de medicamentos para controle de peso, defendendo apenas dieta e exercício. O senhor acredita que isso ainda é um mito perigoso?
Sim, considero um mito perigoso. É claro que alimentação equilibrada e atividade física são pilares fundamentais da saúde. Mas, em muitos casos, eles não são suficientes para controlar a obesidade, porque o organismo cria mecanismos de adaptação que dificultam a manutenção da perda de peso. Negar o papel dos medicamentos é o mesmo que negar tratamento para qualquer outra doença crônica. Não julgamos um hipertenso que começou a usar anti-hipertensivos, ou um diabético que deve iniciar medicações para regular a glicose. O mesmo raciocínio vale para a obesidade: os medicamentos são ferramentas seguras, eficazes e baseadas em ciência, e devem ser integrados a um plano terapêutico individualizado.

Além dos remédios, quais são os tratamentos mais modernos disponíveis para quem enfrenta doenças metabólicas e hormonais relacionadas à obesidade?
Além dos medicamentos, temos estratégias inovadoras, como o acompanhamento multiprofissional estruturado envolvendo médicos, nutricionistas, psicólogos e educadores físicos. A cirurgia bariátrica continua sendo uma opção altamente eficaz para casos selecionados, com impacto positivo inclusive na remissão de diabetes tipo 2. Mais recentemente, temos também a cirurgia metabólica indicada em pacientes não necessariamente com obesidade grave, mas com descontrole glicêmico. O futuro do tratamento da obesidade é justamente integrar tecnologia, farmacologia e acompanhamento individualizado.
Como a telemedicina e as consultas on-line têm ampliado o acesso ao tratamento da obesidade em todo o Brasil?
A telemedicina foi um divisor de águas, especialmente em um país continental como o Brasil. Muitos pacientes que moram em cidades sem especialistas agora conseguem ter acompanhamento com endocrinologistas à distância, sem precisar viajar longas distâncias. Isso democratiza o acesso a orientações seguras e evita que o paciente fique dependente de informações muitas vezes distorcidas da internet. Além disso, o acompanhamento virtual permite um contato mais frequente, com ajustes de tratamento em tempo real e maior adesão. Claro que há situações em que o exame físico presencial é insubstituível, mas a combinação de consultas presenciais e online trouxe mais continuidade ao cuidado.

Muito se fala em estética quando o assunto é emagrecimento, mas quais são os reais riscos à saúde de uma obesidade não tratada?
Esse é um ponto fundamental. O maior risco da obesidade não é estético, e sim de saúde. A obesidade está diretamente relacionada a aumento de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, hipertensão, apneia do sono, alguns tipos de câncer, infertilidade e até problemas de saúde mental, como depressão. Estudos mostram que a obesidade reduz expectativa de vida e qualidade de vida de forma significativa. Portanto, encarar a obesidade apenas pela ótica estética é um equívoco. Quando tratamos a obesidade, não estamos apenas ajudando o paciente a emagrecer estamos prevenindo complicações graves e aumentando anos de vida saudável.
O senhor acredita que tratar a obesidade como doença pode reduzir o preconceito e trazer mais responsabilidade social e política para enfrentar essa questão?
Com certeza. Quando reconhecemos a obesidade como doença, tiramos a culpa exclusiva do paciente e passamos a enxergar o problema como um desafio coletivo, que envolve políticas públicas, ambiente alimentar, acesso a tratamento e educação em saúde. Isso ajuda a reduzir o estigma, porque as pessoas deixam de ver o obeso como “preguiçoso” e passam a entender que ele enfrenta uma condição médica real. Além disso, traz responsabilidade para governos e instituições, que precisam investir em prevenção, campanhas educativas, programas de acesso a medicamentos e promoção de ambientes mais saudáveis. O combate à obesidade não pode ficar restrito ao indivíduo é uma questão de saúde pública e de justiça social.

Ao longo desta conversa, o Dr. Bruno Cardoso reforça que a obesidade não deve ser vista como um desafio individual, mas como uma questão coletiva que envolve ciência, políticas públicas e responsabilidade social. Reconhecer a doença como crônica é o primeiro passo para reduzir o estigma e ampliar o acesso a tratamentos eficazes.
Mais do que falar em estética, o tratamento da obesidade é sobre devolver qualidade de vida, prevenir complicações graves e prolongar anos saudáveis. Para o especialista, o futuro dessa área está na integração entre tecnologia, medicamentos inovadores, acompanhamento multiprofissional e informação correta para a população.
A mensagem final é clara: combater a obesidade exige empatia, conhecimento e ação conjunta só assim será possível transformar a realidade de milhões de pessoas e mudar o curso dessa pandemia silenciosa.
Foto: @andersonclementefoto


